Caro, artigo do padre Charles Borg

“O Verbo se fez carne e habitou entre nós”! O evangelista João enfatiza a presença de Jesus Cristo na carne em oposição a uma doutrina, já evoluindo na época, negando a física encarnação de Jesus Cristo. O apóstolo chega a denunciar como agente de Satanás quem ousa negar a realidade corporal do Filho de Deus. A insistência dogmática na realidade carnal da pessoa de Jesus Cristo tensiona combater uma doutrina recorrente que pretende diminuir a importância da dimensão material da criação e desvalorizar o aspecto sensível e emotivo da condição humana. Nesta línea de pensamento, elementos materiais e aspectos sensíveis são considerados, inclusive, como uma espécie de obstáculo para quem almeja alcançar perfeição espiritual avançada. Quanto menos corpo, quanto menos contato com o sensorial, mais puro e elevado o espírito.

Curiosamente, a excessiva e invasiva presença das ferramentas digitais colabora indiretamente para reforçar esta visão estoica da vida. A facilidade e a rapidez de contatos virtuais paulatinamente substituem os encontros físicos. O conforto de receber mercadorias em casa elimina a necessidade de dirigir-se ao estabelecimento comercial, conversar com outros fregueses e trocar sugestões com vendedores. A facilidade de pagar contas on line poupa o cidadão de deslocar-se às agências bancárias. O conforto é inegável, sem dúvida, mas o subsequente distanciamento entre as pessoas e o consequente isolamento estão ficando perigosamente acentuados.

A pandemia do Covid-19 contribuiu decisivamente para difundir essas facilidades e as estender, inclusive, às esferas religiosas. Muitos habituaram-se a acompanhar as funções religiosas pelos meios sociais, dispensando-se, ambígua e arbitrariamente, da necessidade da presença física nos templos. Esses mais modernos meios de contatos digitais reforçam, indiretamente, o viés espiritual individualista e personalista que marca atualmente a conduta religiosa de muita gente. É crescente a preferência por uma mística intimista e vertical. Valoriza-se o contato com o divino, com o sobrenatural. O próximo, a dimensão horizontal, embora não explicitamente excluída, fica reduzida à esfera das intenções e praticada por pontuais iniciativas assistências.

Causa apreensão como esta mística subjetivista está ficando claramente visível justamente nas celebrações eucarísticas. O contexto bíblico dos registros eucarísticos destaca invariavelmente a dimensão comunitária, familiar, fraterna e interativa da celebração. Enfatiza, ademais, a dimensão carnal do sacramento: meu corpo é verdadeira comida, meu sangue é verdadeira bebida. Comida e bebida, por sua vez, reforçam o aspecto de uma refeição coletiva. Inspiradores os acenos à aproximação física e afetiva subjacentes à celebração eucarística que emergem do registro pelo evangelista João dos acontecimentos da última ceia. Na sua leitura, João, com mística intuição, envolve os acontecimentos daquela noite santa num contexto de acentuada ternura, de amor até o fim. Sugestivamente relata o comovente gesto do lava-pés como abertura dos acontecimentos. A inusitada iniciativa expõe, a partir da recomendação do Mestre de perpetuar seu exemplo, o clima a determinar as celebrações eucarísticas.

Não há eucaristia sem serviço. E não há serviço sem interação com o semelhante. Servir o irmão representa a expressão mais sublime de amor fraterno. Ora, o comportamento sugerido pelo viés subjetivo induz a ignorar quase por completo os demais comensais e insiste em enfatizar o recolhimento intimista. Como se possível for estar em comunhão com Cristo sem estar igualmente em comunhão com o semelhante, ele também agraciado com mesmo alimento divino.

Nítida emerge dos evangelhos a dimensão interativa da Eucaristia. Pão e o vinho não são símbolos de Jesus Cristo. O Cristo vivo e verdadeiro é partilhado e distribuído entre os presentes em clima de refeição fraterna – vocês todos são irmãos – numa explícita atmosfera de caridade. Ora, caridosa é a pessoa que aprende a considerar “caro” o outro, um ser estimado de grande valor! Sentar-se à mesa com Cristo e com os irmãos implica integral e coletiva participação!

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