Abstinência, artigo do padre Charles Borg

“Nunca estivemos sós”! A confidência é de um casal que durante os momentos mais agudos da pandemia da COVID-19 com um membro da família internado e obrigados a manter-se isolados, puderam sentir, graças à formidável avanço tecnológico, o carinho e a solidariedade dos amigos. Apesar das dramáticas restrições e angustiantes isolamentos, a Pandemia induziu os cidadãos a reconhecer os – e a recorrer aos – formidáveis benefícios dos saltos qualificativos e quantitativos dos modernos meios de comunicação.

Experimenta-se, inegavelmente, uma profunda mudança na condução do cotidiano. A tecnologia midiática infiltrou-se com tamanha veemência na rotina da vida a ponto de alterar paradigmas de comportamento. Hábitos são afetados. Cronogramas readaptados. E relacionamentos interpessoais, particularmente, remexidos. Raro é sentar-se á mesa, inclusive no âmbito familiar, sem ser, de alguma maneira, importunado por notificações digitais. A ruidosa onipresença dessas máquinas, também em cultos religiosos, confirma a progressiva dependência que delas tem o ser humano moderno. Fala-se hoje, em círculos médicos e consultórios psicológicos, em compulsão tecnológica, vício digital!

Urge ressalvar os imensos benefícios que a tecnologia moderna proporciona. O acesso ilimitado e fácil à informação, o rápido e eficaz contato proporcionado pela engenharia da comunicação, contribuem muito para espalhar conhecimentos e aliviar sentimentos de saudades. É evidente que não é a tecnologia em si que provoca apreensão, mas o uso que dela se faz! A mesma inteligência humana que consegue tão formidáveis avanços é capaz de transformar conquistas em ferramenta de destruição. É quase compulsiva a interação com dispositivos digitais. Paradoxalmente, a facilidade e a abundância dos recursos estão por detrás dos atuais descompassos comportamentais.

Chama atenção crescente hábito, particularmente entre jovens, dando preferência a contatos virtuais. Vai se perdendo o encanto pelo encontro pessoal, físico. Médicos e psicólogos chegam a diagnosticar indícios de desconforto e tensão diante da possibilidade de encontros pessoais. A preferência parece migrar para o anonimato, indício evidente de uma baixa autoestima, reflexo das questionáveis exigências sobre apresentação e conteúdo determinadas por esta nova onda de influenciadores. Emerge a terrível doutrinação comportamental imposta pelas redes sociais. É o smartphone que define pensamentos, orienta escolhas, determina hábitos e moral! Ao considerar-se incapaz de acompanhar a impiedosa cobrança, o sujeito, particularmente o jovem, tende a se isolar. Perde o encanto do encontro face a face. Num contexto onde, teoricamente, se tem tudo que facilita a aproximação, as pessoas, depressivas e desencantadas, se retraem numa clausura imposta. Cruel paradoxo!

Humanizar a tecnologia é o ingente desafio que se apresenta ao homem moderno! É a tecnologia que tem que estar a serviço do ser humano, como bem comprova o testemunho do anônimo casal acima mencionado. Urge precaver-se diante da massacrante e lucrativa invasão de personagens e plataformas que, pretensiosamente, se apresentam como donos da verdade. Oportunistas agentes, presunçosamente, querem impor costumes, influenciar opções, ditar éticas, inclusive em matéria religiosa. É hora do consciente usuário impor sua ascendência e direcionar a tecnologia para promover um humanismo digno e soberano. Nesta direção, neurocientistas modernos recomendam regulares abstinências digitais com o propósito de o cidadão educar e moderar a compulsão consumista, recuperando assim o equilíbrio necessário para reivindicar a soberania de definir os próprios caminhos!

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