Padre Charles Borg: o simbolismo das cinzas persiste como incitante apelo

Mudou a Quaresma! Quando o calendário civil era configurado pelo ritual católico, a época da Quaresma marcava fortemente os costumes. A sociedade, no geral, aceitava mudar hábitos, que incluía influência nos regimes alimentares e se estendia a programações de atividades festivas. O tempo da Quaresma representava período de privações. No ritual católico, o simbolismo das cinzas, destacando a finitude da vida – recorda-te que és pó e ao pó retornarás – contribuía decisivamente para demarcar a dimensão austera desse tempo litúrgico.

Desde o século XIX, verifica-se um gradual, mas irreprimível, mudança de mentalidade. A filosofia humanista e a economia liberal ganham espaço destacando a soberania individual do ser humano. O sujeito aprendeu a dispensar tutores. Aprendeu a fazer somente o que lhe parece com propósito. Esta mentalidade subjetivista avançou ainda mais graças á forte migração tanto para terras novas como também do campo para a cidade. O fluxo migratório provocou ruptura com as raízes. Tradições, inclusive as religiosas, perderam impacto e sentido. Diluíram-se, especialmente, por falta de uma fundamentação teológico/litúrgica mais balizada. Sobra, então, a impressão de que antigos hábitos haviam mudados.

Esse fenômeno cultural, longe de provocar nostálgico saudosismo, é preciosa ocasião para recuperar o legítimo vigor das propostas religiosas, como a Quaresma. Tudo depende, evidente, da maneira como se enxerga, em primeiro lugar, a identidade cristã. O convicto batizado entende que, por vocação, é chamado a seguir os passos de Jesus. Em outras palavras, a pensar como Jesus pensou, a amar com Jesus amou. Ora, por mais fiel que tenta ser, o discípulo consciente reconhece que muitas vezes fica aquém desse propósito. Reconhece-se santo, mas possui clara consciência de agir, frequentemente, como pecador. Necessita regularmente rever sua identidade e corrigir suas falhas em busca de uma qualificação maior.

É este o propósito do tempo da Quaresma, oferecer ao assumido cristão tempo favorável para realizar uma sincera avaliação da sua identidade religiosa. Sábia e pedagogicamente, a Igreja mantém o simbolismo das cinzas como preciosa inspiração para impulsionar esse reavivamento. As cinzas usadas na Quarta-feira após o fim do Carnaval são confeccionadas de folhagem abençoada no domingo de Ramos do ano anterior. Na época, eram ramos verdes, viçosos. Com o tempo ficaram murchas. Secaram. Perderam cor e vitalidade. Simbolismo perfeito a retratar uma vivência cristã que foi murchando, fazendo concessões a valores profanos. Transformou-se em cinzas. Contudo, como acontece com todo elemento orgânico, folhas secas também possuem o potencial de se transformar em fertilizante, ocasião para um vigoroso renascimento.

Ao participar do ritual da Quarta-feira de Cinzas, o cristão consciente assume suas falhas. Longe, porém, de fazer concessão ao pessimismo, transforma as cinzas de sua infidelidade em adubo precioso para renascer e retomar com mais fidelidade sua vocação de discípulo de Jesus. A Quaresma mudou, sim! Alteração configurada a partir do jeito como se olha para ela, como se pretende aproveitar este período de graça. O simbolismo das cinzas persiste como incitante apelo.

Padre Charles Borg é vigário-geral da Diocese de Araçatuba

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