“Limpos olhos”. Padre Charles Borg escreve sobre o papa Bento XVI

Fazer escolhas. Tomar posição. Atributos próprios a pessoas com discernimento agudo e intuição arguta. Em uma cultura que se desdobra em ocupar o campo de visão e, com isso, reduzir a capacidade de discernimento, que se dedica, ainda, em impor costumes e ditar comportamentos, preservar a capacidade de enxergar a realidade com objetividade e decidir movido unicamente por valores transcendentais é próprio a pessoas com alto grau de personalidade e curtida maturidade. Em um mundo tiranicamente globalizado, que anula a individualidade e força as pessoas a olharem numa única direção, manter o olhar erguido acima do mar de cabeças subservientes é próprio a espíritos corajosos, determinados a perseguir objetivos, mesmo incompreendidos e com sacrifício da própria reputação. Assim foi o Papa Bento XVI, em seus últimos anos de vida. No mundo esteve, sem ser do mundo!

Empolgante é a biografia do falecido papa Bento. Criado na Alemanha nazista, Josef Ratzinger não hesita, finda a guerra, em acompanhar seu irmão mais velho rumo ao sacerdócio católico. Dotado de uma arguta inteligência, logo se destaca como professor de teologia, sendo qualificado por diversos alunos como distinto professor. Suas eram as aulas mais apreciadas e procuradas. Num período quando a vida da Igreja encontrava-se marcada por um clericalismo centralizador, o diligente teólogo alemão logo percebe a urgente necessidade de promover profundas mudanças no jeito de ser igreja. Seu raciocínio lógico impressiona seus superiores a ponto de ser convocado a acompanhar seu bispo como consultor na realização do Conc. Vat. II. Integra a vanguarda renovadora formada por teólogos qualificados e brilhantes do calibre de Congar, Rahner, de Lubac, Schilibeeks, Hans Kung e outros. A esta trupe de notáveis teólogos se credita aquela brisa rejuvenescedora que entrou pelas janelas do Vaticano, escancaradas pelo Papa João XXIII e mantidas abertas pelo Papa Paulo VI.

Nomeado Cardeal e chamado a Roma para presidir a congregação pela disciplina da fé, responsável pela manutenção da ortodoxia dogmática, o outrora liberal Ratzinger, defensor radical do pensamento livre, possivelmente influenciado por um viés marcadamente conservador que toma conta dos altos escalões da Igreja, se transforma em rígido defensor de valores tradicionais tanto em assuntos dogmáticos quanto em matéria de costumes. Vários ex-colegas, como o brasileiro Leonardo Boff, são obrigados a períodos de obsequioso silêncio, impedidos de pregar e de lecionar. Difuso receio se espalha pela Igreja quando, após a morte do Papa João Paulo II, o cardeal Ratzinger é eleito Papa. Teme-se a volta a uma igreja institucionalmente centralizadora, clerical e em direto confronto com os plurais valores de um mundo laico. Prevê-se o acirramento de conflito, dentro da Igreja, entre as combativas alas conservadoras e as de viés pastoral. Para complicar a situação já dramática, estouram os casos de pedofilia pelo mundo. Os pessimistas e céticos decretam o fim da Igreja Católica.

Neste clima tenso, no dia 12 de fevereiro, 2013, o Papa Bento surpreende a Igreja e o mundo anunciando sua renúncia ao papado. Mentes obscuras enxergam a renúncia como um astuto golpe branco. Na verdade, diziam, o papa alemão se retira de cena para poder, camuflado, articular melhor as correntes conservadores e centralizadoras na Igreja. Vaticanólogos e comentaristas desconfiados duvidaram que o Papa se recolheria em assumida clausura, dedicando-se exclusivamente a seus hábitos preferidos; estudar, escrever, ouvir e tocar música clássica e rezar.

O tempo mostrou – foram 9 anos de retiro assumido – a retidão e a sinceridade das intenções do pontífice! O Papa Ratzinger percebe que tempos modernos demandam abordagens renovadoras. Ele se enxerga deficitário, física e mentalmente, e, em um gesto de extrema coragem, profundo discernimento e exemplar humildade, entende que o ofício é mais nobre que o cargo, que servir é mais importante que imperar. Profética lição para as tantas lideranças atuais que se apegam tão obstinadamente a poderes, subjugando cidadãos a seus devaneios messiânicos.

Nada muda se os próprios agentes não mudam! E só muda quem enxerga com limpos olhos e age com reta consciência. Escolhas, então, e decisões impactam! Descanse, em merecida paz, Papa Bento XVI!

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