Profeta novo e a “cultura do cancelamento”, por padre Charles Borg

Alguns capítulos da Bíblia podem vir a ser reescritos! Ou simplesmente suprimidos! E não é por motivos dogmáticos ou canônicos, mas, sim, por imposições culturais. Ganha destaque um movimento conhecido como ‘a cultura do cancelamento’. Este movimento quer boicotar qualquer tipo de expressão ou manifestação que questiona ou contraria formas atuais de comportamento ou de pensamento considerados como avanços civilizatórios.

Observou-se recentemente o ataque a alguns monumentos de personagens históricos relacionados com a época da escravidão. Num passado não muito distante, a mesma postura vândala foi adotada pelo califado muçulmano ao destruir sítios de culturas persas milenares, reconhecidos como patrimônio da humanidade. Nos Estados Unidos, uma corrente sugere substituir, nas igrejas, imagens de Jesus Cristo e de nossa Senhora em pele branca. Entre nós, já houve gente querendo censurar Machado de Assis por insinuações racistas.

A mentalidade inspiradora deste movimento é perigosa e prejudicial. Injusta e obscurantista. É perigosa porque patrulha quem se arrisca a discorrer sobre fatos ou costumes do passado, vistos, hoje, como impróprios ou mesmo condenáveis. Ao abordar temas polêmicos, mesmo colocados dentro de seu contexto histórico, arrisca-se sofrer agressivas censuras. Manifestar opiniões e discorrer sobre teses consideradas de alguma forma ofensivas a um determinado grupo ou movimento, mesmo em âmbito estritamente acadêmico, está ficando constrangedor.

O prejuízo para a cultura em geral, ao se vingar esta mentalidade, fica óbvio, pois tolhe, de forma arbitrária, a liberdade de debater ideias. A história, tanto da filosofia como da cultura em geral, confirma que o avanço em toda área de conhecimento deu-se justamente a partir da livre discussão de opiniões e pensamentos. Alguns erros ou equívocos foram inclusive determinantes para o progresso da ciência.

Garantir a liberdade de manifestar pensamento ou de criticar determinadas teses – seja qual for a área do debate – é imprescindível para o amadurecimento da ciência. Cercear opiniões e calar pensadores em nada contribui para o avanço da cultura. Escritores e pensadores, como também editoras e jornais, estão se sentindo pressionados e perseguidos, ao permitir a abordagem de teses controversas.

Emerge uma tensão melindrosa acerca do que se pode ou não escrever, do que se pode ou não abordar em uma palestra! Estreitar o horizonte do debate sério e respeitoso, cercear a salutar pluralidade de posições e teses, é cultural e flagrantemente empobrecedor! Defender o ponto de vista não autoriza, por óbvio, agredir ou insultar quem pensa ou é diferente. O que sobressai na escalada dessa tal ‘cultura do cancelamento’ é justamente o viés intolerante. Tacanho! Fica proibido divergir.

Levada ao extremo, esta ‘cultura de cancelamento’ pretende apagar ou reescrever a história. Propõe varrer da memória acontecimentos passados, anteriores escolas de pensamento e fórmulas de expressão considerados, sob a moderna lupa de análise, ofensivos, agressivos ou obsoletos. Exige o equilíbrio intelectual que formas de expressão, estilos de vida, jeitos comportamentais, sejam analisados e julgados dentro do contexto social, econômico e literário em que aconteceram. Avaliá-los fora do contexto conota curta inteligência. A civilização, felizmente, avançou. Os relacionamentos evoluíram.

Abolir figuras históricas porque seu comportamento ou seu discurso destoam dos atuais parâmetros representa grosseiro despreparo. Destruir imagens, vandalizar monumentos, queimar livros, banir estudos de autores controversos, porque representam concepções que ferem a moderna sensibilidade de grupos e movimentos é clara admissão de indigência cultural. Não se amadurece sem memória! Nenhuma surpresa, caso esta mentalidade revisionista progrida, aparecer algum profeta novo, auto-ungido, a determinar uma corrigida e atualizada edição da Bíblia!

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