Ver Deus, artigo do vigário-geral padre Charles Borg

  ‘De algo tem que se morrer’! A frase integra a fala do policial Malone, vivido magistralmente pelo, agora saudoso, Sean Connery, no memorável filme Os Intocáveis.  A dimensão fatalista da realidade explica a desilusão com a vida que a morte costuma provocar. Pois do ponto de vista meramente pragmático, a morte representa dura afronta à inerente pretensão do ser humano.
No dizer de alguns pensadores, a morte debocha do ser humano. Tanta inteligência, tanto esforço, tantos prazeres, para tudo acabar em pó ou cinzas desmerece a pujante vitalidade do ser humano. Questiona e desafia, de maneira impiedosa e cruel, o profundo anelo pela vida latente na alma humana. Este enigma existencial induz inúmeros pensadores a decretar total ilusão com a existência, definindo a vida como piada de mau gosto.
Ao colocar óculos de grau, o sujeito, antes míope, consegue enxergar com melhor nitidez objetos e letras. A realidade objetiva permanece inalterada, mas o sujeito, ao usar lentes corretas, foca melhor o objeto da sua visão. Com a realidade da morte – e do sentido da vida – acontece o mesmo. Dependendo da lente que se usa consegue-se enxergar melhor a dimensão da vida ou permanecer com a visão anuviada. Quem se dispõe a usar a lente da fé, a dimensão da vida, e a realidade da morte, adquirem transcendente significado. Quem a descarta segue perplexo ou alienado.
Pela fé em Jesus Cristo, a morte deixa de ser vista como o ponto final da existência humana. Esta verdade reveste-se de dramática densidade na própria pessoa do Cristo. Pois, afinal, ele passou pela experiência da morte. E sua morte foi motivo de frustração e desesperança para seus seguidores imediatos. Bateu neles a mesma sensação de desalento experimentada por tantos que perdem um ente querido. Afinal, que adianta passar pela vida fazendo o bem se as pessoas não reconhecem. E tudo acaba em morte. A sensação de a vida ser uma aventura sem graça derruba miseravelmente.
A morte cava buracos na alma, impossíveis de ser preenchidos. No entanto, pela fé acredita-se que o fim da vida de Cristo não foi a morte, mas a ressurreição, como, aliás, ele tinha predito várias vezes. Com a ressurreição do Senhor Jesus, o enigma da vida assume contornos transcendentes. A morte não tira a vida, a transforma! Ressuscitado, Cristo continua o mesmo Cristo – com as feridas dos pregos – mas vivendo em nova dimensão! A existência deixa de ser dimensionada pelo tempo cronológico e passa a ser medida em compasso da eternidade.
O Senhor Jesus assegura não somente a dimensão atemporal da existência. Ele explicita também sua natureza. Fala de uma morada que ele mesmo prepara para aqueles que o amam. Chama-a de ‘casa de meu Pai’. Ora, a casa do pai é a casa do refúgio, do conforto, do descanso, da liberdade. Do destino final de cada jornada, enfim! Ao colocar a ‘casa do Pai’ como a destinação final da experiência humana, Jesus insinua o repouso resultante da contemplação da face da Deus, da comunhão plena com o Criador! O sentido último da existência humana é a contemplação do rosto divino – minha alma suspira pela face de Deus (Sl 42)!
O anelo da alma de viver bem e para sempre não é desejo utópico, aspiração fantasiosa. Representa, sim, a semente da eternidade plantada na alma, com o objetivo de induzir o ser humano a sempre buscar viver bem e melhor. Nada morre na natureza. A morte, no sentido de fim definitivo, não se encaixa na lógica da criação. Não se aplica, igual e racionalmente, à existência humana. A lente da fé, que ajuda a enxergar a dimensão eterna da existência, ajusta o foco sobre o sentido do cotidiano da vida. Toda atividade passa a ter sentido! O eterno valoriza o finito.
O indomável instinto a favor da vida sinaliza o latente desejo de repousar em Deus, fonte de toda vida. Ensinam os místicos que só é possível ver Deus morrendo! Ao dar o último suspiro, o ser humano nasce para a eternidade. A morte não é o fim. É o começo da plenitude da vida! Quem acredita, valoriza o cotidiano e espera confiante pela festa que não terá fim. Quem não acredita, será surpreendido, e certamente lamentará a pretensão de ter descartado as lentes da fé!
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