Legítimo culto, artigo do padre Charles Borg

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Celebrar é necessário e faz bem! Rituais externam naturalmente o sentimento religioso e alimentam a fé! A polêmica jurídica instalada em torno da realização de celebrações presenciais nestes bicudos tempos de contágio fácil é inoportuna e potencialmente tendenciosa. Pleiteia-se a possibilidade de realizar cultos presenciais avocando os consagrados direitos da livre expressão religiosa e da laicidade do Estado. Escaramuças jurídicas e políticas a parte, oportuno se faz debater o assunto do ponto de vista precipuamente religioso, uma vez que multiplicaram-se comentários adicionais e ácidos apontando, entre outros, interesses pecuniários ou eleitoreiros como motivação principal para tanto lobby em favor de celebrações presenciais.
Templos são espaços privilegiados e adequados para prestar a Deus cultos comunitários. É da natureza de ser igreja congregar-se para realizar cultos e rituais em louvor à divindade. Igreja é comunidade e é na condição de família em comunhão que reza e cultua o Criador. Cultos não são acessórios. Ritos não são adereços. Representam as liturgias a essência do ser religioso. Crentes vivem e se alimentam de liturgias. Este dado teológico e antropológico fundamental, todavia, não pode ser compreendido de forma linear: só há culto em templo e presencial. Olhando bem a história, inclusive a cristã, nem sempre foi possível o livre acesso a templos.
Regimes totalitários mantêm, ainda hoje, inacessíveis as igrejas. É sempre oportuno lembrar, ademais, a resistência que Deus explicitamente manifesta quanto a institucionalização da liturgia em templos. Opõe-se energicamente à construção do templo em Jerusalém. Pela boca dos profetas denuncia com duríssimas palavras a hipocrisia de fiéis que glorificam a Deus com cânticos, sacrifícios e rezas enquanto ignorem, nas lidas cotidianas, seus apelos de compaixão e solidariedade, colaborando para que sangue inocente corresse solto pelas sarjetas. Célebre é o dito profético, retomado e ratificado pelo próprio Jesus Cristo, assegurando que Deus prefere mais misericórdia que sacrifícios. Enfaticamente Jesus declara que não são os locais que são importantes, mas o coração: os verdadeiros adoradores cultuam em espírito e verdade! Antes de ser de pedra, o espaço para culto preferido por Deus é o coração do ser humano! Igreja é comunhão, construída por pedras vivas!
Reunir-se com os irmãos para celebrar é urgência que brota da inclinação gregária do ser humano. Representa necessidade antropológica e predicado eclesial. No entanto, em situações particulares, quando a saúde dos participantes fica visivelmente exposta, como no caso atual da pandemia, urge questionar a coerência teológica na insistência em promover aglomerações de fiéis. Dados estatísticos apontam templos como focos preferenciais de contágio. Emerge com vigor, neste angustiante cenário, a urgência de adequar a arte de celebrar.
É notório como em todos os campos considerados vitais para a subsistência, instituições e indústrias souberam se remodelar, para adequar-se à nova realidade. Impõe-se, pois, sobre as igrejas a pastoral e cívica responsabilidade de, igualmente, adequar sua liturgia diante do atual ameaçador cenário. A hora é de coragem, criatividade e catequese! Uma vez que o espaço físico está, temporariamente, impróprio – aconselha-se rezar em igreja pegando fogo? – que se recorra, e se eduque a valorizar, o espaço virtual de culto e comunhão.
Atestado de indigência teológica e pobreza espiritual insistir, em situação calamitosa como esta, em realizar celebrações presenciais. Genuinamente evangélico seria se a orientação para evitar aglomerações litúrgicas tivesse partido das próprias igrejas, complementada por uma educativa e caridosa campanha de respeito ao próximo. Quem é cristão, cultua, por ora, em casa! Não é o que se quer, mas é o que convém. Parece que há gente querendo reescrever a história de Abraão e Isaac. O recado final no episódio deixa claro: para Deus, poupar vidas humanas constitui o legítimo culto!
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