Penitências, artigo do padre Charles Borg

É hora de acordar! Urge reaprender a enxergar! A articulada difusão de preconceitos, alimentada perniciosa e sistematicamente por interesses sectários e ideológicos, cria preocupante distanciamento entre cidadãos e favorece a danosa discriminação. Constata-se lamentável fragmentação do tecido social. Sem perceber, ou possivelmente até sem explicitamente querer, o cidadão está sendo induzido a aderir a guetos – bolhas, prefere-se dizer hoje – onde se exaltam comuns preferências ao mesmo tempo em que se abominam interesses contrários. Nessas “famílias” o diferente é considerado rival e tratado com menosprezo, chegando ao cúmulo, em alguns casos, de articular sua eliminação. Dissemina-se a cultura da rejeição e do cancelamento. O outro é sumariamente rejeitado simplesmente porque abraça preferências diferentes. Tão escravo do arbitrário preconceito está ficando o cidadão que nem percebe que está sendo envenenado pela mais letal química social: ignorar a básica condição de cívico convívio. Antes de pertencer ao time verde ou ao time vermelho, o outro é um ser humano, merecedor de respeito, de consideração, de digno tratamento. Alimenta esta miopia sectária a perniciosa mentalidade e a petulante convicção de uns se considerarem donos da única verdade e agirem como déspotas. Ao definir arbitrariamente o dogma de não existir outra verdade além “da minha”, aborta-se qualquer possibilidade de diálogo. Cancela-se a aproximação. Declina-se o contato. Instala-se a raiva. Favorece-se a hostilidade. Incitam-se conflitos. A passional miopia impede enxergar com nitidez. Explora defeitos e ignora qualidades. Prefere valorizar o secundário e descartar o essencial. Repara-se como esta irracional intolerância está atualmente infiltrada em todos os segmentos da viva sociedade, inclusive em comunidades religiosas. Urge reaprender a enxergar. Urge acordar!
Viver em fraternal harmonia é dado antropológico básico. Anelo de toda alma humana. Emerge, portanto, o imperativo de reverter esta suicida corrente de intolerância social. Dividida, qualquer sociedade implode. Todos os cidadãos são marinheiros em uma mesma embarcação. Nem todos, porém, exercem a mesma função. Justamente, na divisão de tarefas e na execução responsável das obrigações repousa a confiança de se chegar inteiro ao porto desejado. Em suas diferentes funções, a tripulação se complementa e se robustece. É a elementar lição que todo cidadão entende, mas, estranhamente, recusa aplicar. Diferenças não representam necessariamente conflitos de espaços, nem ocasião para intrigas. São apenas diferenças e como tal devem ser administradas. Salta a urgência de os cidadãos acordarem para esta elementar verdade: reconhecer o direito do outro de ser diferente. Respeitar escolhas não significa necessariamente concordar com elas. Por outro lado, o direito de não compactuar com certas tendências não outorga a ninguém a abusiva comissão de tramar contra a existência de seus adeptos. O respeito pela diversidade de escolhas e a garantia de espaço para a pluralidade de tendências são sinais inequívocos de inteligências esclarecidas e de sentimentos equilibrados. Deprimente é a sociedade que veste sempre o mesmo modelo. Indigente a homogênea uniformidade.
Ao propor a amizade social como tema da Campanha da Fraternidade para a Quaresma deste ano, inspirada na sentença do Senhor Jesus Cristo, que declara categoricamente que todos os seres humanos são irmãos e irmãs, a Igreja Católica no Brasil conclama as pessoas de boa vontade, e não somente os católicos, a refletirem sobre a nobreza de um convívio plural respeitoso e a beleza da convivência em fraternal harmonia e, como natural consequência, a tomar firme posição contra todas as formas de discriminação, de cancelamento, de intolerância, posturas que atrasam o progresso e minam o pacífico relacionamento entre cidadãos. Na atual conjuntura, dialogar, aproximar-se, acolher apresentam-se como recomendadas penitências quaresmais. O Evangelho do Senhor Jesus Cristo desperta consciências e ajusta vistas!

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