Centelha, artigo do padre Charles Borg

Avança a fome! Recentes estatísticas dão conta que, atualmente, no Brasil, mais de 34 milhões de pessoas vivem em situação aguda de falta de alimentos. Segundo a FAO – organização mundial para agricultura e alimentos – define-se fome aguda como a situação de quem não possui perspectiva de alimentação. Dorme (?) o cidadão na certeza que amanhã acordará com mais fome ainda! A calamitosa situação não atinge somente o Brasil, evidente.

É um flagelo mundial. Entre nós, o contexto adquire contornos paradoxalmente escandalosos uma vez que o Brasil é considerado, legitimamente, um dos mais prósperos e diversificados celeiros do mundo! A produção agrícola, a pecuária e a avicultura crescem em número e avançam em qualidade. As exportações asseguram o equilíbrio econômico do país. E, no entanto, entre nós, 60% das famílias vivem em insegurança alimentar. Em 15% dos lares falta comida. E a fila avança. Evidente está que há algo de estruturalmente errado. Não há lógica explicação para celeiros em franca evolução e nativos de estômago vazio! A pandemia, por óbvio, piora a situação.

A fome dói! E tem pressa! Sentimento humanitário autêntico bane resignação! Padrões éticos impõem atitudes urgentes. A hora não é para congressos e prosas. É para ação imediata, consciente, responsável. Urge despertar o latente viés solidário enraizado na alma humana. A bondade é congênita à toda alma humana. E não está vinculada a posses. Cultiva-se, sim, de inatos sentimentos de fraternidade e companheirismo! Comenta-se que entre favelados se em um casebre há comida, vizinhos não passam fome. Infelizmente, esta inerente caridade anda, ultimamente, coberta por uma cultura excessivamente hedonista e sepultada por camadas de egocentrismos.

Bens e capacitações são gerenciados como posses, sujeitos à dialética do mercado, custo/benefício, venda/troca, oferta/procura. A inversão de finalidades perverte a lógica da produção e contamina relacionamentos. Explica, sem justificar, o absurdo e infame paradoxo de celeiros abarrotados e milhares de patrícios na indigência. A mentalidade calculista cerceia a generosidade. Atrofia a alegria. Enclausura o cidadão! Não é sem motivo que o ser humano padece de crescente depressão e sufocante solidão. Tem posses, mas corre compulsivamente atrás de fúteis novidades. Tem comida, mas vive insatisfeito! Habita protegido, mas anda com medo! Desconfiado, desconhece a descontração! Não raro, a latente bondade, necessita ser garimpada!

Urge recuperar a congênita compaixão! É o ponto da inflexão! A artificialidade, por mais difusa, a futilidade, por mais alastrada, não conseguem sepultar a inerente bondade da alma humana! É a indelével semente divina que distingue o ser humano, tornando-o capaz de mudar o rumo das conquistas! Urge despertar o ser humano a voltar a acreditar na potencialidade da bondade depositada em sua alma. E permitir-se inspirar-se, incondicionalmente, pela cultura de cuidado. Ninguém é tão pobre que nada tem a oferecer. Solidariedade não se atrela a volumes. Depende exclusivamente de escolhas! Comprovado está, o mundo reúne totais condições para varrer misérias e eliminar a fome. Depende apenas do regime de gerenciamento.

No episódio da multiplicação dos pães e peixes, o Mestre Jesus deixa claro que foi a generosidade de um garoto que possibilitou o milagre. Guardados com segurança no bornal do menino, os cinco pães e os dois peixes continuariam apenas cinco pães e dois peixes. Abrindo a mochila – o coração – o menino possibilita a Jesus alimentar multidões! Reavive-se, sem medos e sem cálculos, a centelha da bondade. Restaure-se a original dignidade do ser humano! Outro será o mundo, sem males, sem fome!

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